segunda-feira, 9 de julho de 2007

“A Ilha Careca”

Hercílio Luz, há 50 anos (*), elaborou um plano para o crescimento da cidade, na tentativa de transformá-la numa capital de fato, não apenas de direito. Seu projeto ficou no primeiro passo, a construção da ponte. Durante os anos 40 e 50 Florianópolis foi uma cidade sonolenta, eventualmente desperta pelo apito de um ou outro navio em busca de seu porto, de resto já sem qualquer importância. Uma única função ocupava seus habitantes: o Governo do Estado, fato que provocava reações nas prósperas e febris cidades do interior. Não foram poucas as vezes em que se cogitou seriamente da transferência da capital para Lages, para Blumenau, para Joinville, até para uma brasiliesca Catarínea, a ser construída no Planalto. Nem foram poucas as vezes em que as cabeceiras da ponte foram escavadas na procura da caveira de burro que, enterrada na entrada da cidade, impediria seu progresso.
A instalação da Universidade Federal em 1962 produziu um fenômeno até então inédito: a vinda de pessoas do interior e mesmo de outros Estados para viver em Florianópolis. Os ilhéus já não precisavam enviar seus filhos para Curitiba ou Porto Alegre em busca de um diploma. Florianópolis ensaiava um novo papel, o de centro polarizador.
A década de 60 presenciaria uma explosão. Para espanto de seus incrédulos e irônicos habitantes, a cidade começou a crescer. O elevador do Ipase já não atraía curiosas multidões. Outros edifícios surgiam como o Palácio das Diretorias, pronto em 61, após consumir décadas de arrastada construção. O Oscar, o Royal e o Querência destronavam o Laporta Hotel como palco das grandes visitas. Mas faltavam estradas, as comunicações eram lamentáveis, o asfaltamento da ponte enervou a cidade durante doze sofridos anos de fila, a fila da ponte, que virou palavrão.
Em 69, tudo pronto. A BR-59, rebatizada 101, estava pronta e, parecia mentira, o Morro do Encano foi aposentado. Ao mesmo tempo, as torres da Embratel, no Morro da Cruz, já faziam enlaces com microondas vindas do resto do país. Em julho daquele ano, Florianópolis assistiu pela televisão o desembarque de Neil Armstrong no Mar da Tranqüilidade, Lua. Imagens ruins, é verdade, chuviscos e temporais, que captávamos apenas os canais de Porto Alegre. No ano seguinte, porém, a TV Cultura, recém-inaugurada, transmitia triunfante a partida final Brasil x Itália na Copa de 70.
A explosão imobiliária já tinha começado. Um após outro, os velhos casarões foram sendo postos abaixo para dar lugar a edifícios. Desapareceram as chácaras que sombreavam e enverdeciam a cidade. A Praia de Fora foi sumariamente aterrada para dar lugar à Avenida Beira-Mar Norte. Os automóveis se multiplicaram, as ruas engarrafadas, as filas da ponte eram acusadas de levar a cidade à loucura coletiva, precisava-se de nova ponte. Ainda mais depois que Adolfo Zigelli, no programa radiofônico “Vanguarda”, líder absoluto de audiência, estarreceu a todos com a divulgação de documento enviado pelo governo americano ao Brasil, no qual se dizia claramente que a velha e fatigada Hercílio Luz poderia desabar a qualquer momento. Projetou-se a nova ponte, aterrou-se o mar adjacente ao centro, desapareceu a Ilha do Carvão, desapareceu o Miramar, surgiram autopistas. Florianópolis virou Meca, virou o sonho de todo fugitivo das grandes metrópoles. A especulação elevou aluguéis e terrenos até níveis estratosféricos.
Hercílio Luz tinha um plano para que Florianópolis se integrasse ao Estado e se tornasse um centro polarizador.
Seu plano, porém, ficou na ponte.
Depois, a cidade cresceu desordenadamente, caótica e imaginou-se um Plano Diretor que orientasse esse crescimento. O plano foi elaborado, mas durante seis anos assistiu-se às marchas e contramarchas que caracterizavam sua aprovação final. Neste período, Florianópolis transfigurou-se. Mas ainda há tempo para impedir que ela se torne mais um centro desumanizado, neurotizante. Isso talvez seja possível, se soubermos olhar o passado e dele extrair lições para que do futuro não se joguem pedras contra nós.

(*) Feita a conta, o período a que se referiu o redator remetia ao ano de 1926.

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Este texto foi extraído do caderno especial “Brazil, Capital Desterro”, publicado pelo jornal O Estado em 14 de maio de 1976, sendo parte da Exposição Ars Artis – 250 Anos de Cultura, inaugurada no dia anterior no ARS (Centro Comercial Aderbal Ramos da Silva).
Não há informações sobre o autor do texto.
A equipe que elaborou o suplemento:
Max Moura, Murilo Pirajá Martins, Rômulo Coutinho de Azevedo, Elaine Borges, Sérgio Roberto Stodieck (Beto Stodieck), Gilberto Gerlach, Walmor Oliveira, Luiz Paulo Peixoto, Orestes Araújo, Marcos Aurélio Homem (Piranha), Ury Azevedo, Hadilson Savi, Hugo Andreotti, Velmo Teixeira, João Carlos Bernardon, Jorge José Fernandes, Marcos Bayer, Maria Lúcia Luenenberg, Denise Richard, Mário César Evangelista.
Colaboraram: Oswaldo Rodrigues Cabral, Franklin Cascaes e Iaponan Di Soares.
Patrocínio: Grupo Hoepcke e Grupo Maguefa.
Anunciantes: Habitasul Crédito Imobiliário S.A., Caderneta de Poupança Apesc, A Modelar, Molduras Tico-Tico, Besc Financeira S.A. e jornal O Estado.

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